Opinião: Alfredo Matos Ferreira (1928-2015)

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O tempo é assim. Estamos no tempo de saber as coisas pelas redes sociais. O meu amigo, Helder da Rocha, que está a fazer a sua obra genial pelo Brasil faz um share. 
Alfredo Matos Ferreira (1928-2015)
Apenas uma foto a preto e branco, de um tipo de boina num cenário marítimo. Só a data hifenizada nos dá a percepção: morreu Alfredo Matos Ferreira.

Nunca conheci o meu tio avó de quem herdei o nome, que agora não uso, mas dele conheço as histórias. Passava os desenhos a limpo do Matos Ferreira.
Durante a minha infância ouvi as histórias sobre o Matos Ferreira, o Siza, o Meneres, o Botelho Dias, o atelier deles. Também já cá não está quem me possa contar mais histórias. Talvez essas histórias me fizessem querer ser arquitecto. No tempo em que os arquitectos (também) eram (mais) poetas. Mas também gosto de pensar que foi aquele programa de televisão não sei se com o Graça Dias a andar pelas ruas (desurbanizadas) da cidade. Ou por ter crescido ao lado do estirador a preencher quadradinhos pretos que vim mais tarde a saber que representavam pilares. Ou porque a arquitectura é uma disciplina que nos consegue por a comentar a largura do mundo.

O Matos Ferreira pelos vistos era um tipo difícil, confidenciou-nos o caseiro.
Estávamos no quinto ano. O Nuno Oliveira, que está a fazer a sua obra pela Polónia, meu grande amigo e colega de casa na altura, convida-me para ir conhecer o Matos Ferreira. A ideia era irmos a casa dele perguntar se poderíamos tirar fotos à sua casa de férias em Barca d´ Alva.
O Nuno conduziu a conversa, eu não sei se abri a boca. Tinha ouvido tantas histórias do Matos Ferreira, que pouco mais devo ter dito quer “era um prazer”. As fotos eram para a cadeira do Carlos Machado, o famoso caderno de viagens, que já não era de desenho como para o Alves Costa.
Daquela tarde só me lembro que não só tivemos a bênção para tirar as fotos como fomos convidados para dormir lá, na arquitectura do Matos Ferreira. Hoje, se calhar ele fazia isso com todos os putos cheios de paixão pela disciplina que lhe iam bater à porta. Mas (também) fez isso connosco.
Não vale a pena descrever o prazer da viagem. Não me lembro quantos éramos, espalhámo-nos pelos quartos e pela sala, dormimos onde calhou. Percorremos a quinta, ouvimos as histórias do caseiro, comemos (mal) na vila, depois o carro avariou em Espanha e viemos, eu, o Nuno e o Rui Resende, que está fazer a sua obra pela Alemanha, de táxi até ao Porto, com um bacalhau assado pelo meio. Não vale a pena descrever a casa.

Regularmente passo pela Rua Arquitecto Marques da Silva (nem por acaso). O Matos Ferreira vivia, acho, ainda, naquele belíssimo prédio branco-acinzentado pela patine do tempo, desenhado por ele. Sempre que lá passo olho por entre as grades à procura de um janela aberta que me mostre a sala e o Matos Ferreira, aquele das histórias que eu sempre ouvi, sentado, a ler e a ouvir jazz ou fazer qualquer coisa poética que os arquitectos (daquele tempo) fazem.

Quando falo com o Rui, aquele que está a fazer a sua obra na Alemanha, sobre arquitectura, falamos da poesia, do Siza e dos antigos, dos tempos em que se fazia (boa) arquitectura, mais livre, mais pura e mais poética. Dos tempos em que o arquitecto era a arquitectura. Dos tempos em que um tipo chamado José Manuel, como eu, que já não uso, tinha que largar tudo e ia com o Matos Ferreira, para Barca d´Alva passar umas plantas a limpo.
Será que passou o prédio do Bom Sucesso, terá sido mesmo a casa de Barca d´Alva, terá sido a garagem anónima no Marquês ou outra obra qualquer que eu desconheço, porque na realidade, pouca gente conheço o Barão Vermelho, acho que foi o Quintão ou o Machado que me confidenciou o username.

Tirei fotos a duas ou três obras do Matos Ferreira para o Caderno de Viagens do Machado. Eu não, pedi à Sílvia. Eu por vezes só sugeria o ângulo, mais ou menos o que o Mies fazia. Para as obras do Matos Ferreira era demasiada responsabilidade ser eu a disparar. 
E depois há sempre coisas curiosas. Sábado perguntei ao Zé Pereira se o Matos Ferreira ainda era vivo. Disse-me que não sabia, mas que tinha estado com o Pedro Ramalho, aquele que nós dizíamos que era um Holograma.
O tempo é assim. Agora estamos no tempo de criar hologramas e podemos criar um do Matos Ferreira, para por na sala do rés do chão do prédio da arq. Marques da Silva. Assim, sempre que passar por lá posso espreitar pela janela e vê-lo a ler e a ouvir jazz ou qualquer coisa poética que o arquitectos daquele tempo faziam.

Outro dia passamos na praça de Liège e estava o Siza na varanda do prédio que o Souto desenhou para eles. Voltei a dar a volta à praça, já tinha ido para dentro. se calhar acabou o caderno. Quantos é que ainda dão a volta ao jardim para tentar ver um mestre duas vezes?